terça-feira, 10 de junho de 2008

Subindo a Montanha

“O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultrapessoais da sua existência, e que dá ideia de as criticar tão objectivamente quanto o bom do Hans Castorp – até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objectivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes esforços e elevadas actividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda a actividade e de todo o esforço – então tornar-se-á inevitável, precisamente entre as naturezas mais rectas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afectar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida do que é usual fazer-se, sem que a época saiba dar uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê de heróico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não possuía nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente louvável.
(…)
“Hans Castorp respeitava o trabalho. Como poderia deixar de fazê-lo? Isso seria contrário à sua natureza. Tudo contribuía para que o trabalho se lhe apresentasse como digno do mais ilimitado despeito; no fundo, não existia nada fora dele que merecesse tal respeito; o trabalho era o princípio em face do qual uma pessoa se saía bem ou malograda, era o que havia de absoluto na época, e trazia em si a sua justificação. O respeito que Hans Castorp lhe devotava era portanto de carácter religioso e, conforme lhe parecia indiscutível. Isso não quer, no entanto, dizer que ele amasse o trabalho; disso não era capaz, por mais que o respeitasse, simplesmente pela razão de não se dar bem com ele. Um esforço intenso irritava-lhe os nervos e esgotava-o rapidamente. Com toda a franqueza, Hans Castorp confessava que no seu íntimo gostava muito mais das horas de lazer, livres do lastro de chumbo das tarefas penosas, as horas que abertamente se estendiam diante dele, não crivadas de obstáculos a serem vencidos por duras penas. Essa contradição na sua atitude perante o trabalho deveria, a bem dizer, ser resolvida. Talvez por isso o seu corpo tanto como o seu espírito – em primeiro lugar o espírito e sob a sua influência também o corpo – se teriam dedicado ao trabalho com maior prazer e intensidade, se Hans Castorp, no âmago da sua alma, naquelas profundezas que ele mesmo ignorava, tivesse sido capaz de crer no trabalho como valor absoluto e princípio que se justificasse a si próprio, e de achar sossego nesse pensamento. Com isso chegaríamos mais uma vez à questão da sua mediocridade ou mais-do-que-mediocridade, à qual não tencionamos dar uma resposta precisa. Não nos consideramos, de forma alguma, apologistas de Hans Castorp, e por isso não eliminamos a hipótese de que o trabalho, na sua vida, apenas estorvava um pouco o gozo perfeito do Maria Mancini.”
Thomas Mann in Montanha Mágica